Ele contou somente para a sua família e alguns amigos. Deixou uma pista ou outra para alguns colegas. Mas quase ninguém sabia que um piloto de aviação civil poderia – e deveria – estar a bordo do foguete da SpaceX que lançou os primeiros turistas para a órbita da Terra no ano passado.
Kyle Hippchen, o verdadeiro vencedor de um sorteio inédito, decidiu dar o seu assento no voo espacial para um colega de quarto da época da faculdade.
Mesmo contando seu segredo, Hippchen ainda digeriu o fato de ter perdido a chance de orbitar a Terra por estar acima do limite de peso exigido.
Ele ainda não assistiu à série da Netflix sobre o vôo de três dias no espaço realizado em setembro passado com a presença de um empresário de tecnologia, que bancou a viagem, e mais três convidados.
“Dói demais”, disse ele. “Estou insanamente desapontado. Mas é o que é”.
Hippchen, de 43 anos, é capitão da companhia aérea regional Endeavor Air, da Flórida. Recentemente, ele compartilhou sua história com a agência de notícias Associated Press durante sua primeira visita ao Centro Espacial Kennedy da NASA desde que perdeu a carona no foguete.
Ele se abriu sobre a inesperada oportunidade e a frustração quando percebeu que estava acima das restrições de peso da SpaceX e sobre ter dado o seu assento para a única pessoa que ele sabia que aproveitaria tanto o voo quanto ele.
Quatro meses depois da experiência perdida, ele calcula que menos de 50 pessoas sabiam que ele era o verdadeiro vencedor do sorteio.
“Era o show deles, e eu não queria distrair as pessoas em relação ao que eles estavam fazendo”, disse Hippchen, que assistiu ao lançamento do foguete de uma varanda VIP.
Seu assento ficou com Chris Sembroski, de 42 anos, um engenheiro de dados de Everett, em Washington. Os dois foram colegas de quarto na Universidade Aeronáutica Embry-Riddle no final dos anos 1990.
Na época, se amontoavam em carros com outros aficionados sobre espaço e viajavam para o sul dos EUA para acompanhar os lançamentos dos ônibus espaciais da NASA. Eles também pertenciam a um grupo de defesa do espaço e iam à Washington para promover viagens espaciais comerciais.
Kyle Hippchen (direita), com Chris Sembroski perto do complexo de lançamento 39A no Cabo Canaveral em 21 de abril de 2021 — Foto: Kyle Hippchen via AP
Apesar de viverem em costas opostas do país, Hippchen e Sembroski continuaram a trocar notícias espaciais e a defender a causa.
Nenhum dos dois pôde resistir quando o fundador e CEO da Shift4 Payments, Jared Isaacman, fez uma rifa para um assento no voo que comprou da SpaceX – no qual todo o dinheiro arrecadado foi destinado ao St. Jude Children’s Research Hospital, um centro de tratamento de câncer pediátrico na cidade de Memphis.
Hippchen comprou US$ 600 na rifa. Sembroski, prestes a começar um novo trabalho na Lockheed Martin, desembolsou US$ 50.
Com 72.000 tickets no sorteio que aconteceu em fevereiro de 2021, nenhum deles imaginou que ganharia e nem se deram ao trabalho de contar um ao outro que estavam participando.
No início de março, Hippchen começou a receber e-mails vagos procurando saber alguns detalhes sobre ele. Foi aí que ele leu as letras pequenas do concurso: o vencedor tinha que ter menos de 2 metros e menos do que 113 quilos.
Hippchen tinha 1,80 metro e pesava 150 quilos.
Kyle Hippchen, o vencedor de um sorteio do SpaceX, posa para uma foto no Complexo de Visitantes do Centro Espacial Kennedy no Cabo Canaveral, em 21 de janeiro de 2022 — Foto: AP Photo/John Raoux
A primeira reação foi dizer aos organizadores que estava se retirando do sorteio, imaginando que era apenas um de vários finalistas. Na enxurrada de e-mails e chamadas que se seguiram, Hippchen ficou atônito ao saber que havia ganho o prêmio.
Com o lançamento previsto para setembro, o prazo era apertado. A SpaceX precisava começar a medir seus primeiros passageiros civis para os trajes de vôo personalizados e para os assentos na cápsula.
Como engenheiro aeroespacial e piloto, Hippchen sabia que o limite de peso era uma questão de segurança envolvendo os assentos, e não haveria exceção.
“Eu estava tentando imaginar como eu poderia perder 35 quilos em seis meses, o que, quero dizer, é possível, mas não é a coisa mais saudável do mundo a se fazer”, disse.
Isaacman, que bancou o vôo espacial, permitiu que Hippchen escolhesse um substituo.
“A vontade de Kyle de presentear seu lugar a Chris foi um ato incrível de generosidade”, afirmou Isaacman em um e-mail.
Selfie com Chris Sembroski (direita) com Kyle Hippchen em 21 de abril de 2021 — Foto: Chris Sembroski via AP
Isaacman apresentou seus passageiros no final de março: uma assistente médica do Hospital St. Jude que venceu o câncer quando criança; uma professora universitária que venceu uma competição da Shift4 Payments; e Sembroski.
Hippchen juntou-se a eles em abril para assistir ao lançamento de astronautas da NASA para a Estação Espacial Internacional, o último vôo tripulado da SpaceX antes da sua estreia com civis.
Em agradecimento, Sembroski se ofereceu para levar itens pessoais de Hippchen para o espaço, que reuniu seus anéis do colegial e da faculdade, sua dragona de capitão da companhia aérea, uma medalha Coração Púrpura da Primeira Guerra Mundial de um tio-avô e quinquilharias de seus melhores amigos de colegial, advertindo: “não pergunte nenhum detalhe”.
Tripulantes da Inspiration4, da SpaceX, em imagem de dias antes ao lançamento da aeronave — Foto: SpaceX
No dia do lançamento, em 15 de setembro, a notícia se espalhou. Enquanto amigos e familiares se reuniam para a decolagem, Hippchen disse que a conversa foi assim: “Meu nome é Kyle. Você é o Kyle? Sim, eu sou aquele Kyle”.
Antes de subir na cápsula da SpaceX, Sembroski seguiu a tradição e usou o telefone no topo da torre de lançamento para fazer o seu telefonema. Ele ligou para Hippchen e agradeceu mais uma vez.
“Serei eternamente grato”, disse Sembroski.
Kyle Hippchen posa para uma foto no Complexo de Visitantes do Centro Espacial Kennedy em 21 de janeiro de 2022 — Foto: AP Photo/John Raoux
Embora Hippchen não tenha conseguido ver a Terra do espaço, ele experimentou a sensação de ausência de peso por cerca de 10 minutos. Durante o vôo de Sembroski, ele se juntou a amigos e familiares da tripulação em um avião especial de gravidade zero.
“Foi incrível”.
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Fonte: G1