A guerra, como definiu Carl Von Clausewitz (1790-1831), é a “continuação da política por outros meios”. Clausewitz, estrategista e teórico militar prussiano, autor de alguns dos livros mais importantes sobre o tema, entendia que a diplomacia, ou seja, as negociações entre países, não cessava com a eclosão de um conflito. Na verdade, elas continuam a partir de outro cenário.
Há duas perguntas a serem respondidas a respeito do ataque do Hamas a Israel, o mais letal em cinco décadas. A primeira, é por que o grupo palestino decidiu partir para a ofensiva? A segunda, e até mais importante, é por que agora? Ambas as respostas exigem um olhar abrangente sobre o conflito, e pensar em conexões improváveis.
A ação do Hamas acontece em meio a negociações para uma aproximação entre Israel e Arábia Saudita, mediada pelos Estados Unidos. Donald Trump deu início a esse processo, e Joe Biden seguiu a política. A aparente calma na região dava a (falsa) impressão de que sauditas e israelenses estariam perto de um acordo, pelo qual o regime de Riad reconheceria o Estado de Israel, abrindo as portas para uma relação diplomática entre as maiores potências do Oriente Médio.
Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, abordou o tema em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, dando praticamente como certo o entendimento com Riad. “Essa paz fará muito para encerrar o conflito árabe-israelense”, disse Netanyahu. “Inspirará outros Estados árabes a normalizar suas relações com Israel, aumentará as chances de paz com os palestinos, e encorajará uma reconciliação mais ampla entre o judaísmo e o islamismo.”
Foi um tiro no pé, como analisou Marwan Bishara, ex-professor de Relações Internacionais da American University, em Paris, em texto no site da Al Jazeera, rede de TV patrocinada pelo Catar, do qual é colunista. Bishara avalia que os palestinos foram ignorados no discurso, que considerou arrogante.
Motivações pessoais
Essa percepção joga luz em outro aspecto às vezes negligenciados em análises sobre diplomacia: a motivação pessoal dos líderes políticos, que nem sempre segue uma lógica baseada em dados e fatos. O atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, Yahya al-Sinwar, por exemplo, veterano no conflito, passou 24 dos seus 60 anos em prisões israelenses.
Sinwar deixou o cárcere pela última vez em 2011, graças a uma troca de prisioneiros negociada após o sequestro de um soldado israelense por militantes palestinos — não por acaso, no ataque deste sábado, os combatentes do Hamas fizeram uma série de reféns.
Outro líder do Hamas, Mohammed Deif, comandante das forças militares, perdeu um filho recém-nascido, uma filha de três anos e a esposa em conflitos com o exército israelense. “Há claramente um aspecto punitivo e de vingança na operação”, escreve Bishara.
Desejo de vingança e retaliação, no entanto, não respondem as duas perguntas principais, apenas adicionam um componente motivacional que não pode ser ignorado. A decisão de atacar e, principalmente, o timing da ação estão relacionados com o cenário geopolítico, cuja tendência parecia desfavorável ao Hamas.
Política interna
Desde que assumiu o controle da Faixa de Gaza, substituindo a enfraquecida Autoridade Palestina, de Mahmoud Abbas, em 2007, o Hamas tenta instituir na região um governo eficiente, com serviços públicos e medidas para a geração de emprego e melhorias na qualidade de vida, como analisam Daniel Byman e Alexander Palmer, pesquisadores da Georgetown University, em artigo publicado no site da Foreing Policy, revista especializada em relações internacionais.
Essa postura é limitada pelo isolamento econômico de Gaza e pela necessidade de se manter como o principal movimento de oposição a Israel. Mesmo com melhorias na gestão pública, os palestinos convivem com falta de infraestrutura, pobreza extrema e altas taxas de desemprego.
O Hamas sabe que um ataque a Israel terá como resposta um contra-ataque de grandes proporções, que inevitavelmente recairá sobre os habitantes de Gaza. Mas, o cálculo é pragmático e perverso: quanto maior é o sofrimento da população, maior é o ressentimento, o que, esperam os líderes do Hamas, aumenta o engajamento dos palestinos na luta do movimento contra seu inimigo.
Política externa
Como pano de fundo dessas movimentações internas, há um contexto maior de mudanças geopolíticas na região, que não se resume à aproximação entre Israel e Arábia Saudita. Os Estados Unidos, patrocinadores desse acordo, conduzem há meia década uma política de acordos unilaterais com países do Golfo, o que é visto pelo Hamas como uma ameaça a sua posição de líder na região – percepção fortalecida por uma redução no fluxo de dinheiro vindo dos países árabes para apoiar a causa palestina.
Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita fez movimentos de aproximação com a China e com a Síria e, em abril deste ano, recebeu em Riad Ismail Haniyeh, o principal líder político do Hamas, visita que não acontecia há sete anos, e se deu concomitantemente a uma visita oficial de Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina, rival político do Hamas, ao reino saudita – não há informações sobre um encontro entre Haniyeh e Abbas.
Em meio a esse xadrez político, é provável que o Hamas esteja buscando relevância diplomática diante de um cenário adverso. Seus objetivos finais, além da criação de um estado palestino, que é o oficial, no entanto, não podem ser determinados agora. Enquanto a guerra acontece, e parece que essa será dolorosa para ambas as populações, a diplomacia segue em busca de um acordo. Até que algum novo acontecimento alivie as tensões.